O SUL EM CIMA dessa semana é dedicado a obra de VITOR RAMIL, mostrando em especial músicas de seu mais recente trabalho CAMPOS NEUTRAIS
Parte 1:
Parte 2:
VITOR RAMIL
Compositor, cantor e escritor, o gaúcho Vitor Ramil começou sua carreira artística ainda adolescente, no começo dos anos 80. Aos 18 anos de idade gravou seu primeiro disco Estrela, Estrela (1981), com a presença de músicos e arranjadores que voltaria a encontrar em trabalhos futuros, como Egberto Gismonti, Wagner Tiso e Luis Avellar, além de participações das cantoras Zizi Possi e Tetê Espíndola.
1984 foi o ano de A paixão de V segundo ele próprio. Com um elenco enorme de importantes músicos brasileiros, este disco experimental e polêmico, produzido por Kleiton e Kledir, proporcionou ao público uma espécie de antevisão dos muitos caminhos que a inquietude levaria Vitor Ramil a percorrer futuramente. Eram 22 canções cuja sonoridade ia da música medieval ao carnaval de rua, de orquestras completas a instrumentos de brinquedo, da eletrônica ao violão milongueiro. As letras misturavam regionalismo, poesia provençal, surrealismo e piadas. Deste disco a grande intérprete argentina Mercedes Sosa gravou a milonga Semeadura.
Nos anos seguintes, Vitor Ramil lançou os álbuns: TANGO (1987), À Beça (1995), Ramilonga (1997), Tambong (2000), Longes (2004), Satolep Sambatown (2007), Délibáb(2010), Foi no Mês de Vem (2013) e Campos Neutrais (2017), seu décimo primeiro disco e o primeiro gravado em Porto Alegre.
CAMPOS NEUTRAIS
Campos Neutrais é o nome do novo álbum e songbook que Vitor Ramil está lançando. É também o nome de uma das quinze canções do repertório. Querem saber de onde vem esse nome?
No Tratado de Santo Ildefonso, assinado no ano de 1777 pelos reinos de Portugal e Espanha, foi definida uma área neutral. Segundo o historiador Tau Golin, tratava-se originalmente de uma faixa-fronteira que atravessava o Rio Grande do Sul no sentido sudeste-noroeste.
Uma linha dessa faixa corria junto às nascentes de rios que corriam para o Rio de la Plata; a outra, junto às nascentes dos rios que corriam para o mar. A primeira delimitava o território pertencente a Espanha; a segunda, o de Portugal. Como o critério não se aplicava à costa, fixou-se como zona neutra a extensa planície que hoje compreende, aproximadamente, os municípios de Santa Vitória do Palmar e Chuí, incluindo as lagoas Mirim e Mangueira, as línguas de terra entre elas e a costa do mar.
Segundo o acordo, os espanhóis não passariam os arroios Chuí e São Miguel, ao norte. O limite ao sul para os portugueses seria o arroio Taim – linha reta até o mar. Com os anos, essa espécie de terra sem dono no extremo sul do Brasil viria a se tornar conhecida como os Campos Neutrais.
Os Campos Neutrais, atraindo para si toda a mística dos “espaços neutroz”, conforme definido no Tratado, entraram para a história como uma zona que, nos dizeres de Tau Golin, sofreu “confusa e criativa ocupação”, pois o considerável espaço que, segundo o Tratado, deveria ser de ninguém, transformou-se logo “em atrativo, principalmente para aventureiros de diversas origens, gaudérios, caboclos, sertanejos, e pobres do campo em geral, que nela passaram a transitar, prear o gado alçado, ou a se estabelecer, em contato com grupos indígenas que centenariamente já estavam na região. Nesta intrusão, destacaram-se os gaúchos lusos e castelhanos, e os paulistas”.
Outro historiador, Anselmo F. Amaral, chama atenção para “o acerto que fizeram as autoridades portuguesas e castelhanas quanto aos escravos que nos Campos Neutrais se estabelecessem, fugindo aos maus tratos dos patrões. Deveriam merecer eles proteção das autoridades, tanto do Taim como do Chuí”.
Ainda segundo o autor, os Campos Neutrais também foram lugar de refúgio e atividade para o changador – “homem sem Deus, sem rei e sem lei” – que apesar de ser tido como matreiro, bandido, abigeatário ou contrabandista, é considerado o gaúcho primitivo – filho de espanhóis ou portugueses com as índias -, que “agia sempre atendendo à sua condição de homem telúrico. Sempre só – tão somente ele na imensa pradaria! – estaria, assim, obrigado a adquirir uma concepção infinita de liberdade”. O espírito dos Campos Neutrais e o modo de vida dos primeiros gaúchos – a mítica combinação de vida campeira livre e aventuresca com aversão à autoridade – tinham, portanto, a mais completa afinidade.
Graças à rica mistura humana, ocorrida em grande parte à revelia das determinações oficiais dos reinos envolvidos, os Campos Neutrais tornaram-se emblemáticos da condição de fronteira do Rio Grande do Sul e do temperamento de seu povo. Na geografia, são hoje simbolizados principalmente pela reserva ecológica do Taim e seu entorno. No imaginário contemporâneo, abrigam ideias como liberdade, diversidade humana e linguística, miscigenação, comunhão, criatividade, fantasia e realidade, anti-oficialismo, anti-xenofobismo, inconformismo ou subversão, afirmando-se dessa forma também como uma reserva ecológica cultural.
O ÁLBUM
Foi com a intenção de corresponder a esse significado dos Campos Neutrais que foram reunidas as quinze músicas. O álbum tem três idiomas, português, espanhol e inglês; milongas e canções de muitos acentos e sotaques; parcerias com o paraibano Chico César e o maranhense Zeca Baleiro, com o poeta de Belém do Pará Joãozinho Gomes, com a poeta pelotense Angélica Freitas; música para poema do português Antônio Boto; uma versão para um clássico do norte-americano Bob Dylan, outra para uma canção do galego Xöel Lopez; letras que fazem referência a Satolep, Montevideo, Punta del Diablo, Buenos Aires, Belém do Pará, Barcelona, Londres, Hermenegildo e aos próprios Campos Neutrais; participações vocais dos mesmos Chico e Zeca e de Gutcha Ramil; percussões do argentino Santiago Vazquez; naipe de metais (tuba, trombone, dois trompetes e trompa) do Quinteto Porto Alegre; arranjos de metais do porto-alegrense Vagner Cunha; guitarra elétrica do também porto-alegrense e apanhador só Felipe Zancanaro; violão do buenairense del suburbio Carlos Moscardini. Os demais violões, voz e produção musical são de Vitor Ramil.
O engenheiro de som Moogie Canazio veio dos EUA para comandar as gravações, que aconteceram em Porto Alegre no recém-construído estúdio Audio Porto. O songbook foi feito pelo gaúcho Fabrício Gambogi e a programação visual do disco e do songbook pelo carioca Felipe Taborda. Rica mistura humana! “No ensaio A estética do frio (2003), escrevi que no Rio Grande do Sul não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história. Pois antevejo que esse projeto será, artística, cultural, espiritual e geograficamente, minha melhor ilustração dessa ideia”, conta Vitor.
As músicas apresentadas no programa O Sul em Cima são: Stradivarius, Angel Station, Contraposto, Satolep Fields Forever, Campos Neutrais, Labirinto, Isabel, Terra (Tierra), Se eu Fosse Alguém (Cantiga), Palavra Desordem, Duerme Montevideo e Ana (Sara).
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